Darlan Alvarenga e Juliana Cardilli
Do G1
A forte desvalorização do peso
nos últimos dias levantou ainda mais dúvidas sobre a situação econômica da
Argentina, que tem se agravado nos últimos meses com a disparada da inflação e
a redução drástica das reservas internacionais.
Do megacalote da dívida pública
em 2001 aos índices econômicos negativos no início de 2014, confira 10 pontos
que explicam a atual crise na Argentina.
Em 2001, em meio a uma grave
crise econômica e política, a Argentina anunciou um calote em sua dívida
pública, que na época era de cerca de US$ 100 bilhões. A decisão abalou a
confiança dos investidores, afastou empresas estrangeiras e fez o país ter
dificuldades para conseguir empréstimos internacionais. A entrada de dólares
ficou dependente da exportação do agronegócio. Mas a economia perdeu
competitividade, e a entrada de moeda estrangeira com a venda de grãos e carne
também caiu.
Com isso, a Argentina não
consegue mais financiar as suas contas externas, e o volume de reservas
internacionais – espécie de "poupança" em moeda estrangeira contra
crises – vem caindo. Neste início de ano, o volume dessas reservas, que era de
US$ 43 bilhões há 1 ano, caiu para menos de US$ 30 bilhões. As reservas
internacionais brasileiras, para efeitos de comparação, somam mais de US$ 370
bilhões.
Em 2005, no governo de Nestor
Kirchner, o país tentou recuperar credibilidade oferecendo a quem tinha sido
prejudicado pelo calote pagamentos com descontos acima de 70%, a serem feitos
em 30 anos. Mais de 90% dos credores aceitaram a proposta do governo, mas ações
de quem rejeitou o acordo ainda correm em tribunais internacionais.
"De certa forma, a crise de
2001 nunca foi resolvida totalmente, pois parte dos credores não aceitou o
calote e foi para a Justiça, o que impede até hoje o país de levantar fundos
internacionais de ajuda", afirma Carlos Stempniewski, economista e
professor de Comércio Exterior das Faculdades Rio Branco.
Para tentar mudar a situação, o
governo adotou diversas medidas que restringem a saída de dólares do país:
aumentou impostos sobre gastos no cartão de crédito no exterior, passou a
exigir aprovação do banco central para compra de dólar para turismo e impôs
restrições ao comércio online.
Com a falta de dólares no
mercado, a cotação disparou. Em 23 de janeiro, o peso argentino desabou 11%, a
oito pesos por dólar, na maior queda diária desde a crise de 2002. Fora do
mercado oficial, no paralelo – que escapa às muitas restrições do governo –, a
cotação está ainda mais alta: era de 10 pesos por dólar, tendo se popularizado
a expressão "dólar Messi", em referência ao número da camisa do
jogador, e já passou a ser negociada por 13 pesos.
A falta de confiança no sistema
financeiro do país é enorme, e a "poupança" dos argentinos passou a
ser juntar e guardar dólares em casa, o que faz a moeda disparar ainda mais,
para desespero do governo. "O que aconteceu foi uma rendição à realidade.
O governo que dizia o tempo todo que não iria desvalorizar o câmbio. Na
prática, começou a ceder", diz Leonardo Trevisan, que é professor de
economia internacional da PUC São Paulo.
"Restou pouco espaço para
mágica. Não tem mais o que proibir. Já proibiram tudo por lá. Chegaram ao ápice
de controlar até as compras online", diz Carlos Stempniewski.
"Pode-se prever mais desvalorização e mais turbulência. É um cenário
preocupante que vai exigir remédios amargos que governos populistas resistem a
aplicar", completa o economista.
As medidas afetam, além da
população, também as empresas argentinas. Para evitar que a balança comercial
fique negativa – quando a importação é maior que a exportação –, quem quiser
importar precisa compensar com uma exportação no mesmo valor. Há empresas de
peças de automóveis, por exemplo, exportando vinhos. Essa política, no entanto,
também é responsável por reduzir ainda mais a confiança dos investidores
estrangeiros, que se afastam do país e não colocam dólares para dentro da
fronteira.
Na sexta-feira, 24 de janeiro, o
governo argentino anunciou um relaxamento das medidas de controle e disse que
permitirá a compra de divisas estrangeiras pela população para posse e economia.
A medida, no entanto, pode ter pouco efeito, visto que os dólares têm sido
escassos no país.
A economia pouco competitiva
também levou às alturas a taxa de inflação. De acordo com o Instituto Nacional
de Estatística e Censo (Indec), órgão oficial do governo, a inflação terminou
2013 em 10,9%. Há suspeitas, no entanto, de que os números têm sido maquiados.
Segundo as principais consultorias independentes argentinas, a inflação anual
foi de pelo menos 28%.
"Nem o governo acredita
nesse índice. A maior prova são os aumentos salariais para os sindicatos
amigos. Os caminhoneiros, por exemplo, receberam em outubro reajuste de
25%", afirma o professor Leonardo Trevisan, lembrando que os indícios de
maquiagem nos dados oficiais levou a revista "The Economist" a
excluir os números do governo argentino das suas publicações.
O Conselho Executivo do Fundo
Monetário Internacional (FMI) emitiu no início de 2013 uma declaração de
censura contra a Argentina por considerar insuficiente a melhoria de qualidade
dos dados oficiais do país, pedida pelo fundo desde setembro de 2012.
Em junho do ano passado, os
preços de 500 produtos foram congelados e tabelados como tentativa de controlar
a crescente inflação. Grande exportadora histórica de commodities, a Argentina
está importando produtos básicos para conter a alta de preços. Recentemente, o
país anunciou que iria comprar tomates do Brasil.
"O dólar não pode ter um
valor que o governo imagina que ele tem. Mas se deixar o câmbio livre, a
pressão inflacionária será ainda mais forte. Como o governo não quer mudar o
modelo econômico, ele cede um pouco no câmbio e aperta do outro lado, como
acaba de fazer ao restringir as compras online", afirma Leonardo Trevisan.
Leonardo Trevisan, da PUC,
explica que, mesmo com uma economia pouco industrializada e baseada na
exportação de carne, soja e trigo, a Argentina conseguiu de fato uma melhora
nos primeiros anos após a moratória. "Apesar da forte pressão contra a classe
média, que compra cada vez menos, de fato há hoje uma distribuição de renda
muito mais significativa. Quase 12% dos argentinos muito pobres deixaram a
linha de pobreza desde 2004. Mas este tipo de modelo cobra o seu preço, basta
ver o que acontece no setor de energia", afirma o professor, citando os
recentes blecautes. "Há 25 anos não se constrói nenhuma nova usina de
geração de energia na Argentina".
"A família Kirchner entrou
pisando no acelerador e a forte demanda externa por commodities ajudou muito a
encobrir os problemas. Mas aí veio a crise financeira de 2008, 2009, a China
passou a comprar menos, o dólar ganhou força no mercado internacional e agora a
conta está chegando", afirma o economista Celso Toledo, da LCA, em
referência ao período entre 2004 e 2007, com o presidente Néstor Kirchner,
marcado por taxa de crescimento acima de 6% e crescimento das reservas
internacionais.
"O fato concreto é que a
Argentina não possui uma estrutura produtiva diversa e competitiva capaz de
gerar superávits na conta corrente do país (quando há mais dinheiro entrando no
país do que saindo)", avalia Cristina Helena Pinto de Mello, professora de
Economia da ESPM.
Além da falta de investimento e
da dificuldade de atrair capital estrangeiro, analistas apontam uma regressão
institucional no país. "O que está faltando na Argentina são instituições
sólidas e confiáveis, e regras confiáveis. É o único país do mundo de renda
média baixa que faz maquiagem de dados econômicos", afirma Rodrigo Zeidan,
professor de economia e finanças da Fundação Dom Cabral.
A situação do governo Kirchner se
complicou em outubro de 2012. Cristina, que já enfrentava uma oposição mais
forte, com diversas críticas ao seu governo, sofreu um revés nas eleições
legislativas, quando sua coalizão perdeu nos principais distritos – apesar de
manter a maioria no Congresso.
"Com o resultado, o governo
não tem maioria parlamentar que permita uma reforma para a reeleição de
Cristina pela segunda vez. Com isso, ela encerra sua presidência em 2015",
diz Luis Fernando Ayerbe, coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e
Internacionais da Unesp.
A ausência da presidente na
campanha, as dúvidas sobre seu verdadeiro estado de saúde – ela ficou afastada
para uma cirurgia de drenagem de um hematoma cerebral –, as incertezas sobre a
economia do país e o medo da violência pesaram na hora do voto, fazendo do
pleito para legisladores uma prévia das eleições presidenciais de 2015.
Cristina retomou seus
compromissos semanas após a eleição, em 18 de dezembro de 2013. Na data,
anunciou novos ministros da Economia e da Agricultura – medida que surpreendeu
a imprensa local.
"Ela fez uma reforma
ministerial importante. Colocou pessoas de confiança, mas que tem
independência, voo próprio. O kirchnerismo tem uma forte influência do presidente
nas decisões cotidianas. Agora ela nomeou pessoas com maior capacidade de
gestão e mais independentes", explicou o professor Luis Fernando Ayerbe.
Logo após a reforma ministerial,
Cristina saiu de cena e ficou mais de um mês sem aparições públicas – um
contraste com a personalidade midiática e a agenda de intensas atividades. No
período, passou férias em sua casa em El Calafate, no sul do país, e fez
despachos internos na Casa Rosada.
Marcos Castrioto de Azambuja, que
já foi embaixador do Brasil na Argentina e na França e é membro do Conselho
Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), acha que a
mudança de perfil se deve a uma consciência de Cristina de que o modelo
utilizado por ela se esgotou.
"Como ela estava jogando não
estava dando certo. Sua popularidade está caindo. Ela teve um susto relacionado
à saúde, um problema que podia ser muito sério, deu a ela a ideia da
precariedade das coisas", disse. “É um problema de quem vive um fim de festa,
fim de feira. O mundo vai pior hoje do que nos anos iniciais do Néstor
Kirchner, quando os países de commodities tiveram seu mercado imensamente
ampliado. Hoje há uma diminuição real da capacidade de crescer".
A falta de credibilidade do
governo também tem influência no posicionamento da presidente. Segundo o
embaixador, a Argentina cometeu "um pecado muito grave da mentira
sistemática dos números da economia". "Ninguém acredita no que sai da
boca dela [Cristina]. Há uma presunção de que tudo é uma mentira. Agora ela se
deu conta que tem menos tempo, menos prestígio e menos pano de onde cortar. O
que faz ela sobreviver é que na Argentina não há alternativa ao
peronismo", afirmou Azambuja.
Para o professor Ayerbe, tanto a
saída de cena quanto a reforma ministerial evidenciaram a necessidade da
presidente de focar na sucessão. "A situação está difícil para o
kirchnerismo. Para o governo agora a questão é viabilizar uma candidatura
própria, apesar dos percalços econômicos".
Os problemas, para Rubens
Ricupero, ex-embaixador, ex-ministro e atual diretor da Faculdade de Economia
da Faap, criam um clima perturbador no país. "A Argentina talvez seja o
país da América do Sul em que haja mais chance da vitória da oposição – se bem
que os dois principais candidatos saíram mais ou menos do setor que era
anteriormente do governo" explica. "A derrota do governo é muito
forte, e sem dúvida o novo presidente vai herdar uma situação difícil".
Os dois principais nomes da
oposição são Sergio Massa, ex-prefeito de Tigre e deputado eleito pela
província de Buenos Aires, e Mauricio Macri, prefeito de Buenos Aires que já
lançou sua candidatura à presidência para 2015.
Os analistas concordam que
Cristina enfrenta sérias dificuldades para ter um sucessor com chances de
vitória. Deste modo, a oposição tem amplas chances, apesar de não haver nenhum
candidato com grande promessa de renovação.
"A ideia geral é que o
kirchnerismo sai em 2015. Eles não têm um candidato que seja viável
eleitoralmente. Isso só seria possível se a situação estivesse muito boa, como
foi o caso de Lula e Dilma no Brasil em 2010. Para construir um candidato
viável, é preciso gerar melhoras. E esse ano vai ser um ano de baixo
crescimento", explica o professor Luis Fernando Ayerbe.
Para o embaixador Azambuja, o que
faz Cristina ter sobrevivido aos últimos anos é que na Argentina não há
alternativa política ao peronismo – corrente da qual ela é a mais recente
"encarnação". Além disso, a crise nos setores populares tem sido
menor que nos médios e altos. "O peronismo é uma grande ameba, governa às
vezes para a esquerda, às vezes para a direita, mas é a força motriz da
Argentina. Não há como escapar desta grande ameba que vai mudando de forma, que
reúne nacionalismo, populismo e estadismo com doses maciças de corrupção".
"As diversas modalidades de
peronismo são muito poderosas. Não se viu até hoje uma força verdadeiramente
independente do peronismo", afirma o embaixador Ricupero. Para ele, mesmo
com uma derrota nas próximas eleições, o kirchnerismo não deve ser visto como
derrotado. "A Cristina já tem um certo esquema de sucessão, com seu filho,
com a juventude. É difícil imaginar que o kirchnerismo desapareça".
Quando Cristina conseguiu voltar
do afastamento médico e realizou a mudança inesperada de gabinete – que levou o
foco do país novamente para as iniciativas presidenciais – novos problemas
surgiram, criando uma sensação de crise. Um deles foi a greve de policiais, que
resultou em protestos da categoria e saques generalizados no interior do país.
Pelo menos nove pessoas morreram em enfrentamentos.
"Ela estava saindo da
doença, tinha nomeado o novo gabinete, era uma fase que aparecia como de
retomada, e acontece algo assim, que cria um clima de insegurança. Ficou mal
para ela", analisa o professor Ayerbe.
O embaixador Ricupero,
entretanto, lembra que graves protestos e saques não são inéditos na Argentina,
apesar da gravidade da situação. "As pessoas se alarmam muito quando isso
acontece, mas talvez em outro país fosse um sinal muito mais grave.
Evidentemente é grave, mostra uma deterioração muito séria da coesão nacional,
da capacidade dos governos de controlar o que está acontecendo. Mas é um fato
que se repete há muito tempo", explicou.
Para o embaixador Azambuja, é
preciso lembrar que o descontentamento na Argentina é um estado permanente.
"A Argentina é um país de insatisfeitos, há uma sensação de que perdeu o
bonde da historia, uma irritabilidade, uma frustração. Você tem essas greves
todas, mas como não há caminho, não há alternativas".
Desde 2009, o governo argentino e
o grupo de comunicação Clarín estão em uma batalha judicial para a colocação em
vigor da Lei de Meios, que obriga a empresa a se desfazer de várias de suas
posses. No fim de 2013, a Suprema Corte da Argentina declarou a lei
constitucional.
O jornal, que já fazia oposição
ao governo Kirchner, passou a viver praticamente em guerra com a presidente
durante os anos de brigas judiciais. Para os especialistas, entretanto, a parte
mais grave da disputa já passou, e não deve influenciar o governo no futuro
próximo.
"Há muita controvérsia com a
Lei de Meios, mas quando ela foi apresentada passou tranquilamente, foi
aprovada sem problemas. Quando começou a se caracterizar esse conflito, começou
a se associar que ela era para prejudicar o grupo Clarín, criou-se a polêmica,
a lei foi contaminada", explica o professor Luis Fernando Ayerbe.
"Mas isso agora terminou. O grupo está fazendo um ajuste, o governo vai
aprovar, e o conflito não deve ser mais tão grave, apesar de o Clarín continuar
na oposição".
A forte desvalorização do peso
argentino nos últimos dias é um indicativo de esgotamento do modelo econômico e
da série de medidas lançadas pelo governo de Cristina Kirchner. Para os
especialistas ouvidos pelo G1, a situação pode estar perto de entrar em um
caminho sem volta, de consequências preocupantes.
Ainda que o cenário atual seja o
resultado do acúmulo de crises e de problemas antigos não resolvidos, os
analistas destacam que a situação das reservas internacionais se agravou
no comando de Cristina, quando as
receitas com exportações deixaram de ser suficientes para garantir o equilíbrio
das contas.
"O conjunto da obra é até
pior do que o de 2001. A dinâmica inflacionária, no nível em que está, só se
rompe com um choque, não tem choro nem vela. Eu diria que a chance de ter uma
recessão daquelas em que o PIB cai 4% nos próximos anos é de quase 80%",
diz o economista Celso Toledo, da LCA. "O triste é que já aconteceu com
eles. Historicamente, todos os males da Argentina são iguais aos do Brasil, mas
um pouco piores. Do governo militar ao plano de estabilização".
A receita econômica para
situações como a da Argentina costuma, invariavelmente, incluir a adoção de
medidas como desvalorização cambial, mudanças tributárias, aumento na taxa de
juros e controle dos gastos públicos. "A Argentina pode dar a volta por
cima, basta seguir a cartilha. Vai doer, mas olha o que está acontecendo com
países como Grécia e Portugal", diz Rodrigo Zeidan, da Fundação Dom
Cabral.
Para os analistas, entretanto, o
cenário político com vista às eleições presidenciais de 2015 continuará se
impondo, com poucas chances de uma mudança de rota na política econômica no
curto prazo. Para eles, caso o cenário internacional não se altere muito, a
tendência é que a crise não melhore nem se intensifique.
Para o embaixador Rubens
Ricupero, a atual realidade lembra crises do passado, mas sem tanta gravidade.
"Não há perspectiva de melhora econômica e política. Há fatores que podem
complicar a situação, como o julgamento sobre a dívida externa argentina. O
tempo vai se esgotando, a situação é grave, mas ainda não se chegou a um
colapso do sistema, como já ocorreu antes".
Para o professor Luis Fernando
Ayerbe, há um consenso até mesmo na oposição de que a situação não vai piorar –
mas grandes mudanças também não são esperadas. "O governo não vai gerar
uma alternativa que melhore a situação econômica. O que se discute é levar as
coisas até o final do mandato".
A capacidade de flutuação do
país, de conseguir manter-se entre diversas crises, é lembrada por Azambuja.
"A Argentina surpreende pelo que não conseguiu fazer, por não ter
aproveitado oportunidades extraordinárias. É intrinsecamente um país rico. O
que surpreende não é que ela vá mal, mas como ela não consegue ir bem. O país não
seguirá muito bem, mas não se prepare para nenhum colapso. Não devemos
subestimar a Argentina".