terça-feira, 14 de julho de 2020

ENTRE ORWELL E HUXLEY


Por Rogério Linhares

   A habilidade de sonhar e especular o futuro parece ser uma das principais características do ser humano. Gostamos de imaginar mundos perfeitos ou disfuncionais. A expressão UTOPIA vem do grego e significa “lugar nenhum”, ela foi cunhada no século 16 por Thomas Morus no sentido de sociedade perfeita e ideal. Já a expressão DISTOPIA, proveniente também do grego e significando “lugar ruim”, apareceu apenas no século XIX por meio de Stuart Mill e tem o sentido oposto de utopia.

    A partir da década de 30, enquanto regimes totalitários como o fascismo, o nazismo e o comunismo se espalhavam pelo mundo, dois grandes autores de distopias sugiram no campo literário. Em 1932 Aldous Huxley publica o livro ADMIRÁVEL MUNDO NOVO, uma distopia sombria e aterradora. Nela não existem famílias, isto é, pais, mães e casamentos. O sexo é livre, mas a concepção de bebês não ocorre pela forma materna e natural, isso é responsabilidade das fábricas de bebês que os modifica geneticamente para nasceram em castas pré-determinadas. Nessa sociedade a diversão está disponível a qualquer um e se alguma coisa der errada existe a “droga da felicidade” chamada de soma. Na distopia narrada por Huxley existem apenas dez áreas civilizadas na Terra e algumas poucas comunidades nativas, consideradas selvagens, que ainda preservam a tradição de família e religião. Um líder civilizado chega a afirmar: “O mundo agora é estável... as pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança... não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas... E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma.”

   Em 1948, apenas três anos após o termino da Segunda Guerra Mundial, George Orwell publica o livro 1984, outra distopia tenebrosa e assustadora, mas por um ângulo completamente diferente do de Huxley. Por essa obra Orwell tece duras criticas aos regimes totalitários comunistas, especialmente ao stalinismo da URSS. Em 1984 o mundo está dividido entre três países em uma guerra sem fim e as pessoas são manipuladas pela "novilíngua”, isto é, pela linguagem politicamente correta que tem como finalidade evitar a liberdade expressão e consequentemente impedir o surgimento de ideias indesejadas. Nessa obra, as ditaduras totalitárias buscam censurar as vozes divergentes pela destruição dos adversários, pelo domínio do conhecimento e pela disseminação de um ponto de vista único e monopolizado da verdade.

   O critico Neil Postman, em um livreto de 1985 intitulado “Nos Divertindo Até Morrer”, faz uma belíssima diferenciação entre a distopia de Huxley e de Orwell. Segundo ele “o que Orwell receava era aqueles que proíbem livros; Huxley receava que se chegasse a uma situação em que não era necessário proibir livros, porque ninguém queria ler. Orwell temia que nos privassem da informação; Huxley temia que a informação fosse tão abundante que acabaríamos por nos tornar passivos e desinteressados. Orwell imaginava que nos escondessem a verdade; Huxley que a verdade se perdesse num mar de irrelevância. Orwell dizia que nos tornaríamos uma cultura controlada; Huxley falava da trivialização da cultura... Em ‘1984’ as pessoas são controladas pela dor. Em ‘Admirável mundo novo’ o controle é exercido pelo prazer. Resumindo, Orwell receava que o medo nos destruísse, enquanto que Huxley temia que a nossa destruição fosse feita pelo desejo.”

   Arthur Schopenhauer dizia que “a vida oscila, como um pêndulo, de um lado para o outro”. Após a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria os Estados Unidos garantiu hegemonia no mundo capitalista e parecíamos avançar indubitavelmente para a sociedade distópica de Huxley. Nos últimos anos, com o avanço da influencia da ditadura chinesa, as democracias ocidentais vem se fragilizando e corremos o risco de vivenciarmos a distopia de Orwell. Muitos são os sinais que indicam essa mudança de direção. A cada dia o “estamento burocrático” nos impõe uma linguagem politicamente correta que inviabiliza o debate, busca incansavelmente o monopólio da verdade pela censura das vozes discordantes nas redes sociais, usando como álibi o combate as fake news e elabora uma jurisprudência que criminaliza qualquer oposição como antidemocrática. Devemos ficar atentos, pois assim como o sapo da panela fria (que vai esquentando aos poucos) não percebe a morte iminente, corremos o risco de não enxergarmos, ou enxergarmos tarde demais, que o mundo concebido por Orwell pode está mais próximo do que imaginamos.


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